sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Desvinculação dos IMLs da área de segurança - Artigo

Genival Veloso de França*

Resumo: O autor analisa os aspectos negativos da vinculação, subordinação e dependência dos Institutos Médico Legais às Secretarias de Segurança Pública e propõe algumas alternativas de modelos funcionais para estes órgãos da perícia forense.

Unitermos: Restrições ä subordinação policial da perícia. Autonomia pericial. Independência administrativa dos IMLs.

Ninguém de bom senso poderia ficar indiferente à maré de violência que se observa mais e mais nos dias de agora. Não é tanto a violência comum que preocupa. A que nos causa maior aflição é a violência institucional ou a que flui do crime organizado, que se reflete nas execuções sumárias e arbitrárias, nas mortes suspeitas sob custódia, nas torturas e tratamentos desumanos, tipos de agressão estas que tornam toda comunidade refém e contra a qual se exige uma política de segurança eficaz e inteligente.

Como se sabe ainda, a Medicina Legal e toda perícia forense em nosso país, mesmo diante da existência de novas técnicas, do avanço da ciência e da contribuição multiprofissional, dispõe no campo legispericial de um tímido progresso, em face da relativa preocupação dos setores públicos de criar, recuperar e aparelhar os anfiteatros e laboratórios das instituições especializadas, e reciclar o pessoal técnico. Só com esta incorporação, acreditamos, seria possível a sociedade resistir ao resultado anômalo e perverso de uma violência medonha que cresce, atormenta e parece não ter fim.

Nada mais justo então do que investir dia a dia nesta contribuição técnica e científica, dotando a administração judiciária de meios probantes de significativo valor no curso da apreciação processual. Enfim, a primordial função da Justiça é buscar a verdade dos fatos.

Por outro lado, não se pode esconder que parte da estrutura policial tornou-se viciada pelo arbítrio ou pela corrupção, imbuída de uma mentalidade repressiva, reacionária e preconceituosa, na mais absoluta fidelidade que o Sistema lhe impôs desde os anos de repressão. Hoje tal fração desta estrutura não somente perdeu a credibilidade da população, mas lhe causa medo.

Dentro deste quadro, um dos fatos mais graves e desalentadores tem sido a inserção dos Institutos Médico Legais e demais órgãos periciais nos organismos de repressão, quando deviam estar entre aqueles que são os verdadeiros arautos na defesa dos direitos humanos. Isso infelizmente pode comprometer os interesses mais legítimos da sociedade. Muitos desses Institutos estão subordinados diretamente a Delegados de Polícia.

Por isso, pela incidência da violência e do arbítrio de parte expressiva dos órgãos de repressão, sempre defendemos a idéia da imediata desvinculação dos Institutos de Medicina Legal e dos outros institutos de perícia forense da área de Segurança, não só pela possibilidade de se estabelecer pressões, mas pela oportunidade de se levantar dúvidas na credibilidade do ato pericial. A polícia que prende, espanca e mata é a mesma que conduz o inquérito.


Como sempre, mas hoje muito mais, os órgãos de perícia são de importância significativa na prevenção, repressão e reparação dos delitos, porque a prova técnico-científica, pelo menos sobre o prisma doutrinário, tem prevalecido sobre as demais provas ditas racionais, notadamente nas questões criminais.

Assim, a Medicina Legal não pode deixar de ser vista como um núcleo de ciência a serviço da Justiça, e o médico legista nestas condições é sempre um analista do Juiz, e não um preposto da autoridade policial. Desse modo, sente-se a necessidade cada vez mais premente de transformar esses Institutos em órgãos auxiliares do Poder Judiciário, e sempre com a denominação de Institutos Médico Legais como a tradição os consagrou pelo seu transcendente destino. Atualmente há uma tendência da tecnocracia estatal chamar esses departamentos de Institutos de Polícia Científica ou de Polícia Técnica. Nem se pode admitir ações repressivas como ciência nem Medicina Legal como polícia.

Lamentavelmente, por distorção de origem, quando as repartições médico-legais nada mais representavam senão simples apêndices das Centrais de Polícia e os legistas como meros agentes policiais, permanece o desagradável engano, ficando até hoje a idéia entre muitos que a legisperícia é parte integrante e inerente da atividade policial. Basta ver os editais de concurso desta categoria divulgados pelas Secretarias de Segurança. E o mais grave: isso fez com que se criasse, num bom número de legistas brasileiros, uma postura nitidamente policialesca que se satisfaz com a exibição de carteiras de polícia ou de portes de arma.

A Medicina Legal tem outra missão, mais ampla e mais decisiva dentro da esfera do judiciário, no sentido de estabelecer a verdade dos fatos, na mais ajustada aspiração e interpretação da lei.

Foi com esse pensamento que algum tempo atrás a Comissão de Estudos do Crime e da Violência, criada pelo Ministério da Justiça, propôs ao Governo a desvinculação dos Institutos Médico Legais e da própria Perícia Criminal, dos órgãos de polícia repressiva. O objetivo era o de "evitar a imagem do comprometimento sempre presente, quando, por interesse da Justiça, são convocados para participar de investigações sobre autoria de crimes atribuídos à Polícia".

A solução apresentada pela Comissão, tendo como presidente o Professor Viana de Moraes, era “que estes serviços técnicos hoje sujeitos à Secretaria de Segurança Pública, passem a integrar o quadro administrativo das Secretarias de Justiça”. Pessoalmente acho que pouco mudaria se os órgãos de perícias fossem para tais Secretarias, ou mesmo para o Ministério da Justiça. O local mais adequado seria o Ministério Público Estadual, as Universidades Públicas ou, com mais propriedade, a criação de uma Coordenadoria Geral de Perícia ligada diretamente ao Governo estadual, a exemplo do Estado do Pará, cujos resultados têm sido exemplares. Ao Ministério Público por razões constitucionais, pois lhe cabe o ônus da produção da prova. Às Universidades Públicas por sua independência, isenção e qualidade científica. E às Coordenadorias Gerais de Perícia, na forma de autarquias, pela possibilidade de sua autonomia administrativa, financeira e operacional.

A justificativa, já tempos atrás, era baseada em trabalhos do juiz João de Deus Mena Barreto e do criminalista Serrano Neves, documentados por vários crimes atribuídos aos policiais, onde os laudos elaborados por peritos oficiais subordinados às Secretarias de Segurança, segundo aqueles autores, contestavam e negavam a autoria. Entre eles o da morte do operário Aézio da Silva Fonseca, servente do Itanhangá Golf Clube do Rio de Janeiro e do operário Manoel Fiel Filho, esta última dada como suicídio por estrangulamento, o que teoricamente e naque­las circunstâncias era inaceitável, enfatizam aqueles autores.

Não seria justo dizer que desta vinculação possa exis­tir sempre qualquer forma de coação. Mas, dificilmente se poderia deixar de aceitar a idéia de que em algumas ocasiões possa existir pressão, quando se sabe que alguns órgãos de repressão no Brasil estiveram ou estão ainda envolvidos no arbítrio e na violência. Pelo menos, suprimiria esse grave fator de suspeição, criado pela dependência e pela subordinação funcional.

Enquanto fração expressiva do aparelho policial permanecer comprometida com esses lamentáveis episódios e as repartições periciais forenses estiverem sob sua dependência e subordinação, haverá, no mínimo, dúvidas em alguns resultados. Pelo menos foi assim que decidiu o juiz Márcio José de Moraes sobre o laudo pericial do Jornalista Vlademir Herzog.

Mais recentemente, em relatório sobre a Tortura no Brasil, produzido pelo Relator Especial sobre Tortura da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em seu item 147, consta entre outros: “As vítimas de tortura devem solicitar um formulário médico de um delegado a fim de serem examinadas em um Instituto Médico Legal. Esses institutos ficam sob a jurisdição da mesma Secretaria que a polícia, isto é, a Secretaria Estadual de Segurança Pública. (...). Além disso, muitos dos detentos com quem o Relator Especial se entrevistou informaram que, por medo de represálias, quando examinados em um IML eles não se queixavam dos maus tratos a que haviam sido submetidos. Eles muitas vezes se queixaram de terem sido levados ao IML por seus próprios torturadores e de terem sido intimidados e ameaçados durante o traslado. Muitos deles teriam inventado histórias para responder às perguntas dos médicos, de modo a não implicar quaisquer funcionários encarregados da execução da lei. Isso também aconteceria quando o incidente de tortura tivesse ocorrido em uma penitenciária, uma vez que, nesse caso, as vítimas são acompanhadas por policiais militares, que, em muitos estados, também participam da vigilância das penitenciárias. (...). Além disso, foi dito que laudos médicos elaborados por profissionais médicos independentes não teriam valor tanto probatório nos tribunais quanto um testemunho do IML. No item 148: “Embora não seja possível avaliar até que ponto as alegações acima revelam um problema generalizado, é evidente que o problema é suficientemente real com relação a um número significativo de funcionários do IML. Além disso, enquanto esses funcionários permanecerem sob a mesma autoridade governamental que a polícia, só poderão persistir dúvidas quanto à confiabilidade de suas constatações”. Há ainda neste mesmo relatório, no item 22 de suas conclusões: “Os serviços médico-forenses deveriam estar sob a autoridade judicial ou outra autoridade independente, e não sob a mesma autoridade governamental que a polícia; nem deveriam exercer monopólio sobre as provas forenses especializadas para fins judiciais”.

Conclusões

Pelo exposto, a vinculação, subordinação e dependência dos Institutos Médico Legais aos órgãos ostensivos e repressivos ligados às Secretarias Estaduais de Segurança Pública mostram-se fora de propósito pela falta de sintonia nos seus objetivos e na sua metodologia funcional, além da descrença e do desconforto que podem causar o resultado de seus laudos à sociedade, principalmente quando o fato a apurar aponta a responsabilidade direta ou indireta da polícia.

A solução seria a vinculação das instituições periciais ao Ministério Publico Estadual, às Universidades Públicas, ou, como melhor idéia, a criação de Coordenadorias Gerais de Perícia, na forma de autarquias, com sua devida independência e autonomia, a exemplo do Estado do Pará, cujos resultados e modelo podem servir de padrão.

* Professor Titular de Medicina Legal da Universidade Federal da Paraíba e Professor Convidado do Curso de Mestrado ä distância em Medicina Forense da Universidade de Valência (Espanha).

Um comentário:

Anônimo disse...

Tenho algumas considerações a fazer sobre este fato:
1) Não tenho conhecimento pleno do fato, mas ao que me parece apenas o Rio Grande do Sul e o Pará tiveram seus IMLs desvinculados da Secretaria de Segurança Pública. Pergunte a eles o que eles estão achando..
2) Sair das Secretarias de Segurança, somente se fosse para ficar vinculados diretamente ao Ministério da Justiça ou ao Ministério Público Estadual. Sair da Segurança para ficar sob a tutela de Secretaria de Saúde, Deus nos acuda. Todos nós sabemos o valor que tem um médico numa Secretaria Estadual de Saúde.
3) Sobre exercicios físicos nos concursos: todos nós não estamos vinculados as normas legais cíveis, penais, e do nosso CRM? Não cumprimos todos nossos deveres e ordens? Se voce se canditada a um concurso em que o cargo faz parte do organograma da polícia e este concurso exige que voce faça corridas, abdominais,barra e etc., CUMPRA-SE.
4) Podem falar o que quiserem. Atire a primeira pedra quem nunca se beneficou de uma credencial. Moramos num país miserável, onde todo dia tem uma blitz, desrespeito policial o outras mazelas. Voce não precisa e nem deve andar com sua credencial por motivos óbvios. Mas, quando voce está viajando e é parado por algum motivo, o tratamento é outro quando o pessoal vê seu documento.
5) Todos nós estamos vendo aí a PEC 300 DA PM. Vai passar. O futuro são os peritos pedirem igualdade salarial com os peritos federais. Imagine se saímos da segurança e um dia os peritos criminais conseguem uma equiparação desta monta: vamos ficar muito putos com isto. No estado do Tocantins, os legistas ganham um percentual do salário dos Delegados (que tem dedicação exclusiva). Se eles conseguirem as equiparações com os delegados federais, como querem, nossos salários sobem junto.
Portanto, reitero que é melhor ficar quietos onde estamos.

MÉDICO LEGISTA ANÔNIMO DO TOCANTINS.